Eu nasci. Eu nasci e não foi naquele instante em que fui parida e me cuspiram para ter lugar neste mundo de loucos rasgando as entranhas da minha mãe. Eu nasci. Nasci? Sim, naquele momento solene majestoso e ultimamente raro em que estive verdadeiramente em mim. Nasci. As pontas dos meus dedos quentes, os olhos sem pesar, os cabelos tipicamente reduzidos a um aglomerado confuso preso por um elástico cansado. Eu nasci. Naquele momento em que me ouvi. Nasci quando fiquei quieta sossegada sozinha e um pouco aborrecida até. Nasci porque não senti nada. Não senti nada. Não senti deslumbramento. Não senti êxtase. Não senti azáfama ao falar. Não corri ao olhar para o relógio. Não senti música barulhenta a vibrar-me nos pés. Não senti prazer. Nada. Não senti nada. Não senti nada e nasci. Nasci porque parei. Nasci porque estou sóbria calma tranquila sossegada plácida só. Nasci porque estou só. Nasci e afogo-me assim neste limbo maravilhoso entre a minha existência e o meu sossego eterno, balançando os dedos na minha pele agora serena. Nasci. Não fui parida. Não fui gerada. Eu nasci! Eu nasci porra! Eu nasci e agradeço aos astros tudo o que trouxeram até mim. Todas as vezes em que fui mero pedaço rasgado de papel amarrotado. Todas as vezes em que uma mão me agarrou a testa e a outra me degolou sem piedade. Todas as feridas rasgadas abertas e infectadas na minha carne. Todas as doenças raras contagiosas impiedosas e cansativas que sofri. Todas as quedas ao andar de bicicleta. Todas as torturas e febres. Todos os embustes desesperos e tormentos. Todas as camadas de pele que me queimaram. Ainda bem que me queimaram. Ainda bem que me doeu. Todas as vezes em que fiquei imóvel de olhos cravados na parede sem saber para onde ir. Todas as dores e gritos roucos. Todas as chamas inflamadas à volta do meu pescoço. Todas as horas em que jurei que havia alguém melhor que eu; alguém mais bonito mais engraçado mais inteligente. Mais. Alguém mais que eu.
Mas eu nasci. Eu nasci! Eu nasci porque não há ninguém mais que eu. Não há ninguém mais bonito que eu. Não há ninguém mais engraçado que eu. Não há ninguém mais inteligente que eu. Não há ninguém mais amado que eu. Não há ninguém que fale como eu. Não há ninguém que se ria como eu. Não há ninguém que dance como eu. Não há ninguém que seja tão trapalhão como eu. Não há ninguém que tenha defeitos como eu. Não há. Não há ninguém mais que eu, e é por isso que eu nasci. É por isso que fui jorrada aqui. Para não existir neste pedaço de terra batida nenhum ser semelhante a mim. Nem melhor. Nem mais. Não há ninguém mais que eu. Eu nasci. Eu nasci. Eu nasci. Não há ninguém mais que eu. Não há ninguém mais que tu. Não há ninguém mais que a vizinha do primeiro andar. Não há ninguém mais que um velho sentado num banco. Não há ninguém mais que ninguém, não há, não há. Não há ninguém mais que nós, porque nós nascemos. Estamos cá. Nós estamos cá e não há porra nenhuma mais que nós! Não há.
Eu nasci.
Eu nasci porque não há ninguém mais que eu.