30.10.13

Vivia sozinho o senhor José. Viúvo, uns setenta e muitos anos ou talvez oitenta, não me recordo agora. A mulher morrera durante o sono numa noite do ano passado, assim, de repente, sem avisar, mas também se a morte nos avisasse que vinha era uma merda não concordas?, ninguém estava à espera, deve ter sido coração coitadinha. O senhor José acordava sempre mais cedo pois que não tinha novelas para ver no serão da noite anterior. Não reparou na mulher ali ao lado já fria e saiu apressado aos seus afazeres que afinal de contas nem eram afazeres nenhuns. Ia ao café mas não bebia café, essas coisas da cafeína só fazem é mal e lá ia ele mesmo assim sem beber café, conversava com o da mesa da frente, um amigo de muitos anos este, e com o apressado já atrasado para o trabalho, oh e aquele conheço eu bem que vive ali para os meus lados, e afinal o senhor José conhecia toda a gente e toda a gente conhecia o senhor José que era aquele que ia para o café sem beber café. Lá a encontrou, à mulher, estranhou não a ver levantada quando regressou a casa para o almoço e foi então que decidiu ir á 
cama dos dois que agora era só a cama dele
e deu com ela já pedaço de carne fria e dura, sem cor, mas parecia mesmo que estava a dormir pobrezinha. E lá se destilou da morte da sua companheira de há tantos anos ao lado da única filha que andava emigrada para a França e que apanhou um avião para chorar a morte da mãe. Os conhecidos do café lá fizeram o seu papel vestindo-se de preto, mãos cruzadas à frente do corpo e alguns, vi eu, brincaram com os polegares rodando um contra o outro muito discretamente não fosse alguém reparar naquele acto de auto entretenimento. E depois lá se foram esquecendo do sucedido porque esses assuntos da morte toda a gente esquece menos quem amava o morto, quem amava o morto fica aqui despedaçado sem vontade de rodar os polegares um contra o outro. E enfim que a única filha do viúvo voltou para França e para a vida dela e o senhor José ficou cá sozinho, sem vontade de voltar ao café e com mais espaço na
cama que era dos dois e que afinal continuava a ser dos dois.