Eu que estava com ela todos os dias e que a fazia rir todos os dias, eu que lhe dava os bons dias sorridente mesmo que tivesse passado a noite a escrever merdas sem sentido numa insónia qualquer, eu que a defendia e dava a cara pelos actos inconscientes dela e garanto-te, nunca hão-de dizer mal de um amigo meu à minha frente seja ele o que for, faça ele o que fizer. Eu que metia o meu braço direito nos ombros dela para partilharmos o guarda chuva eu que me ria das piadas que ela contava e que só tinham piada porque era ela que contava, eu que lhe aturava as bebedeiras. Eu. A única que lhe dizia as coisas a cru porque as pessoas já não sabem ser frontais, eu que a ouvia contar as mesmas histórias vezes sem conta. Eu que um dia deixei da ver nas aulas e nisto o tempo passou, a caixa de entrada do telemóvel deixou de ter o nome dela em primeiro lugar, amigos em comum tínhamos poucos e um dia voltei a vê-la, por mero acaso, de casaco cor de mel com um cachecol a tapar-lhe a boca e o nariz, sua idiota, fazes-me uma falta do caralho, tenho escrito para ti e sobre ti e tu evaporas sem dizer nada, se tivesses avisado com um ou dois dias tínhamos evaporado juntas. E eis que ela me olha atenta com uma tristeza disfarçada nos olhos e uma madeixa de cabelo a vagear pelo cachecol: estou apaixonada por um cabrão. E eu fintei-a e disse-lhe coisas em silêncio e ela repetiu-me estou apaixonada por um cabrão. E num caso normal abraça-la-ia, talvez me sentasse num café qualquer e puxasse de um cigarro, conta-me lá essa história de estares apaixonada por um cabrão e ela teria vomitado tudo ali mesmo, uma lágrima ao canto do olho e o meu dever de boa ouvinte cumprido. Mas era ela. E era eu. Pensei em perguntar-lhe onde tinha andado, o que tinha feito nos últimos meses. Se se meteu na droga ou virou alcoólica. Se não voltaria ás aulas. Mas enfim, tirei-lhe a madeixa de cabelo do cachecol e meti-o por detrás da sua orelha. O meu queixo tremia. Toda a gente se apaixona por um cabrão de vez em quando. Usa isso como inspiração. E continuei o meu caminho embora meio perdida e confusa porque reparei que nesse dia eu vestia um casaco cor de mel e tinha um cachecol a tapar-me a boca e o nariz. E por mero acaso tinha encontrado uma velha amiga na rua que me tinha chamado idiota e que estava zangada por eu não dar notícias. E essa amiga penteou-me uma madeixa de cabelo que eu tinha a vagear-me pela cara e foi embora sem dizer mais nada. Toda a gente se apaixona por um cabrão de vez em quando. Usa isso como inspiração. E eu uso.