08-10-2014

Quando ele se afirma como mais uma desgraça sem rumo, uma vítima de si próprio que se vai arrastando no vómito de sempre para que a turba engula que está tudo bem e se cale, calem-se por favor calem-se. O actor que interpreta o vilão na novela da noite, asqueroso desprezível imundo infame. Só. Terrivelmente só sem entender porquê. A sombra perdida de um beco qualquer, pináculo de gulas e ciúmes; possessivo doente e louco que lambuza agora os seios de uma mulher como se a sua vida dependesse disso. Uma dor fina dos pés até ao âmago da sua existência inútil, beijaram-se pela primeira vez e logo ele soube que aquela seria a última mulher que beijaria na sua vida.
Tu serás a última mulher que beijarei na minha vida.
Ligeiramente mais baixa e sardas a rebentarem-lhe na cara, não te importas que eu seja isto? Que eu seja este bocado de carne em desassossego perdido em pesares que nem eu próprio sei explicar? Não te importas que seja um constante sufoco, acordando em aflição e em aflição me deitando noite após noite após noite após noite após noite após noite? Não te importas que ande em constante sobressalto alvoroço sendo falso para todos e para mim mesmo, mentiroso cobarde ansioso abalado por mim próprio? Inquieto? E ela finta-lhe um olhar distante e não lhe responde enquanto se deleita no corpo dele devagar, porque as coisas devem ser feitas devagar e a vida deve ser levada devagar mas ninguém consegue nem concebe essa ideia de mãos acorrentadas e emoções controladas pois que sabe bem dar um grito de vez em quando e ter sexo a três, ah!, só para nos esquecermos que somos uma merda e nunca vamos efectivamente ser ninguém neste pedaço redondo de terra e guerras vãs. Quando ele afirma ser mais uma vítima que tresanda a vida citadina louca insana enquanto a admira, entorpecido e excitado, a lamber o órgão mais precioso que ele possui e agarrando-lhe os cabelos loiros com fulgor, a respiração ofegante, a saliva dela a escorrer-lhe carne abaixo afundada e alagada na tesão que agora ele é, até as sardas sumirem atrás de um perímetro abdominal pouco cuidado. Ninguém sabe o que vai para além de um tiro na cabeça ou de uma corda ao pescoço, e é então que ele,  aquele ser indigno desajeitado e sem fé, pega no corpo da mulher sem dó e a vira de costas para si sob uma cama velha cansada e farta de assistir a sexo ocasional com outras putas, sepultando-se dentro dela em movimentos de vai e vem, as mãos totalmente esticadas passeando pelo corpo dela, as costas, as nádegas jubilosas, os cabelos, os seios erectos, a alma, tudo devagar para lhe entrar na pele e nas entranhas, até não sobrar qualquer vestígio de carne possível de ser lambuzado.
Talvez a gente exista para vivermos sozinhos, caminhando imundos e amargos num caminho que é só nosso e de mais ninguém, para mais ninguém, sem prender ninguém, sem arrastar ninguém para um penar que só nós entendemos, quando entendemos, e é tão difícil entender esta merda, isto é tão difícil.
Ele vem-se dentro das vísceras daquela mulher num gemido demorado amargo sentido, as sobrancelhas fundidas às bochechas quase que a esconder aquele olhar agora longe enquanto lhe aperta as nádegas outrora carentes e sai, finalmente, de dentro dela. Apunhalado pela vergonha daquilo que ele se tornou, olha para aquele corpo ainda esticado de barriga para baixo uma última vez, abre a segunda gaveta a contar de baixo, eu no fundo sabia que serias a última mulher que iria beijar. Coloca na sua mão a única fuga possível, a passagem para um sítio novo e longínquo onde não há dor quando se acorda e onde não se chora silenciosamente em comboios. Aponta o objecto de salvação no centro da testa e puxa o gatilho. O sangue esguicha afincadamente e sem piedade pelo quarto. Ela grita e vai embora.