01-11-2016

E eu disse-lhe que fazia coleção de moleskines e que escrevia compulsivamente desde os meus dezasseis anos pois nutri um medo meio que perturbador de me esquecer das coisas que vou vivendo e porque, tu sabes, é a escrever que encontro o único lugar onde consigo realmente entender quem eu - como se eu soubesse sequer . E já que perguntas, confessei-lhe também que houve uns anos da minha vida em que escrevia coisas que me diziam e que eu não queria esquecer. Alguém a chegar nos entretantos da conversa. Acho que no fundo ela não entendeu nada do que eu disse. Ainda bem que escrevo e que tenho cadernos cheios de palavras bonitas. As mangas da minha camisa ligeiramente amarrotadas pela minha fraca capacidade em exercer perfeitamente o acto de passar roupa a ferro. Reparei tarde. Ainda assim, vais-te rir, mas até as conversas de circunstância com alguém que no fundo não percebe o que significam as minhas palavras porque não me conhece de lado nenhum, é o suficiente para passar o resto do turno a escrever merdas na cabeça, as letras que se beijam umas nas outras e se abraçam até parir palavras, as palavras que se lambuzam até formarem frases e textos intermináveis que se tornam fumo instantes depois, Ana estás a ouvir? esta miúda é surda, e eu a ir acordando devagar para a vida real, essa agora querida mas outrora puta que não me tem corrido como havia imaginado: tantas coisas que eu queria estar a fazer e não estou, tantas coisas que eu queria já ter conquistado e não conquistei, tantas cadeiras onde poderia estar a ser boa profissional na área que amo e não estou, mas calma Ana que a vida dá muitas voltas e obriga-nos a ter calma. Agora estou no lugar certo para ter calma. E a cada dia em que sou feliz em Sagres, em que o trabalho me corre bem, a cada dia em que chego a casa cansada mas feliz, a cada dia em que posso admirar e vergar-me perante a infinidade do mar, mirar atenta e curiosa cada recanto daquele azul até á linha do horizonte; a cada dia que gozo a possibilidade de ter a minha pele salgada porque a praia é a 40 metros da porta da minha casa; a cada dia em que posso finalmente usufruir da grande sorte que tenho em viver com o meu melhor amigo, por sinal também meu querido namorado, e saber que o tenho sempre aqui para me ir amparando, eu entendo que estou no sítio certo para ter calma e ser feliz devagar. Não te preocupes, estou bem. Tenho pensado. Tenho respirado. Tenho metido a vida em dia. Tenho escrito. E tenho tentado perdoar, mas sobre isso falamos depois. Tenho saudades de dançar. Mas de dançar uma coisa como deve ser. Dava um dedo mindinho do pé por uma boa festa de techno. Porra. Ainda assim, tenho-me esforçado como te disse, para regressar àquilo que quero ser. E eu vejo isso em cada hora que tenho para ficar sozinha, geralmente em vésperas de folgas até às cinco da manhã, vejo isso ao recordar, fodasse sabe bem recordar, e vejo isso nas músicas estranhas que eu oiço. Não ter ninguém por perto que tenha o mesmo gosto musical estranho tem-me custado, sei que achas isso curioso e eu também. Porque só se está verdadeiramente longe de casa quando não se tem ninguém ao nosso lado que oiça a mesma música que nós e eu aqui não tenho ninguém que saiba o que é trip hop ou conheça Massive Attack, ou se arrepie com Sigur Rós, Portishead, James Blake, Linda Martini... Um único recanto onde eu diga que chorei num concerto de Rhye e não haja uma alma que conheça. Ou já me bastava alguém que não dissesse que adora hip hop embora não conheça  Mos Def, Chance the Rapper, Tyler the Creator ou Kendrick Lamar. Eu gosto tanto de ti porque te arrepias nas mesmas partes das músicas que eu.
 Há dias em que a vida real é demasiado cansativa para me encontrar, mas lá descubro um jeito de sentir a minha pele novamente, as minhas mãos. Estou no sítio certo, por enquanto. Vá lá, já sabes que não é por muito tempo. Ainda há muito por escrever.